Ler é sonhar pela mão de outrem.
Fernando Pessoa
Jorge Luis Borges, grande escritor argentino, afirmou, uma vez, que a literatura não fala sobre a vida, é a própria experiência da vida. E essa ideia não está longe do fato de que, desde tempos imemoriais, contar histórias se constituiu como um dos fios de construção das relações humanas. Não à toa os homens sempre se sentavam em roda para, ao narrar aventuras, grandes batalhas ou apenas experiências cotidianas, guardar a memória cultural e afetiva do grupo. O círculo, símbolo de união, de comunidade e de aliança, fortalecia as relações e a noção de igualdade entre os membros das comunidades mais primitivas e remotas.
Mesmo que afastados no tempo desses primeiros homens e invadidos por tantas outras redes de relação social, não podemos abdicar dos traços fundantes de nossa humanidade. Ainda hoje, uma boa história é a mais bela metáfora da vida e continua reunindo quem fala e quem escuta num espaço comum, onde a palavra se torna um método de conhecimento, uma forma de penetrar no mundo, encontrar-se, encontrar o outro.
Quando o texto é literatura ficcional, a experiência vivida é completamente distinta da leitura de qualquer outro texto, posto que ler um texto ficcional é fugir à arbitrariedade do código, desmontada pela liberdade com que a linguagem literária se constrói[1]. A palavra, ou mais especificamente, a palavra escrita, no texto ficcional, é um modo com que o escritor expressa um olhar sobre o mundo, olhar esse focado, intenso, que se revela ao leitor através de sua maior criação, que é o narrador. “Um leitor é, então, a escuta de uma voz que interfere, com sua pátina de intenções, entre essa abstração que chamamos ‘a cena’ e quem lê, parede de cristal que impregna tudo o que toca, e que imprime um olhar ao que é narrado”. (ANDRUETTO, 2012, p.102)
Se assim concebemos a relação entre o texto ficcional e o leitor – uma relação dialógica, abrimos vias amplas de cognição pela ficção. Através dela, o ser humano lança novos olhares sobre o existente, bem como funda caminhos para a construção de outras possibilidades. Imaginar é uma forma de conhecer, inventar histórias nos permite abstrair do mundo e dar-lhe novo sentido. Assim,
quanto mais fantástica é a ficção, mais atenta deve estar ao detalhe concreto, ao real. Nisso reside seu paradoxo: não estabelece a verdade, mas nos convence de sua semelhança com a vida; assim, a escritura – insensata, louca – revela-nos a vida com extrema prudência. É por meio da ficção que outras experiências são vividas e que se chega ao interior de outras consciências, porque ela nos permite ser outro (s) sem perder a consciência de sermos nós mesmos. (ANDRUETTO, 2012, p.106)
A cadeia de relações que se estabelece no momento da leitura é, portanto, única. Há o texto, que funda uma nova realidade, o escritor que intenciona e cria através do texto outra realidade, a realidade e a imaginação do leitor que interpreta o texto ressignificando-o. Nada está posto, os vínculos vão se construindo e o leitor e/ ou ouvinte está imerso nesse universo que o coloca no mundo e o recoloca diante de si, de suas realidades internas e externas. Experiência extrema de humanidade. Experiência que não sucumbe à era tecnológica, posto que não se resume ao que o texto informa, mas ao que ele proporciona de sensações, de vivências e de liberdade.
Se buscarmos mensurar a importância de tal experiência quando colocada num contexto de coletividade, que é o caso da escola, a tendência é a intensificação desses vínculos e da força que um texto ficcional pode adquirir. Aqui vale recorrer às reflexões de Italo Calvino, escritor italiano, de origem cubana, que convoca os homens do século XXI, do terceiro milênio, a pensarem sobre o futuro do livro, da escrita e no futuro da capacidade de expressão da própria humanidade:
O sinal talvez de que o milênio esteja para findar-se é a frequência com que nos interrogamos sobre o destino da literatura e do livro na era tecnológica e dita pós – industrial. Não me sinto tentado a aventurar-me nesse tipo de previsões. Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos pode nos dar. (CALVINO, 1990, p.11)
[1] A ideia de que a língua é um código arbitrário e de que a literatura é o caminho da liberdade para tal arbitrariedade pode ser mais bem compreendida através da leitura do livro Aula, do semiólogo francês Roland Barthes.
A ciência e o pensamento científico já não nos apresentam de forma inquestionável as soluções para as grandes questões da humanidade. E as questões humanas se avolumam, na medida em que estamos imersos numa crise de valores, tangenciada pela corrupção dos pilares que nos sustentavam – Igreja, Estado e família. Homens e mulheres não têm respostas, nem caminhos pelos quais trilhar a transformação necessária. Caíram por terra os projetos de revolução do século XX.
Mas não falemos de grandes revoluções, falemos das possibilidades, ainda que diminutas, que temos na escola para a transformação do ser e do social. Falemos do espaço/tempo que a escola pode e deve reservar, no terceiro milênio, para um trabalho que dê esteio aos homens em formação, proporcionando experiências de desenvolvimento das virtudes, especialmente das relações afetivas.
Não se trata de uma receita para o sucesso, muito menos de uma indicação para um único caminho. A reflexão que propomos aponta para a literatura como expressão de humanidade capaz de garantir esse momento de experiência, bem como de aprendizado. Nesse sentido, ler, na escola, pode vir a ser um caminho de humanização desse lugar que se manteve como instituição pilar da sociedade e que pode ser espaço de convivência com o outro, que é “um igual” e “um diferente”:
Ainda que tenha sido sempre o centro do saber no mundo ocidental, a escola precisa criar e garantir um espaço/tempo para a humanização, enquanto filosofia e projeto de transformação/revolução. A vida acadêmica do estudante, num mundo em que as outras instituições pilares da humanidade – família, Estado e Igreja - passam por um processo de degradação e de rompimento de paradigmas, deixa de ser a única preocupação de professores, coordenadores e diretores. Nesse sentido, a literatura, na generosidade com que trata o humano, seria o próprio espaço de encontro entre as crianças e suas respectivas identidades, entre cada uma delas e o outro, numa perspectiva de transformação social pelo caminho de um novo humanismo. Uma revolução pelo amor.
Não se pode negar que a escola responde e corresponde às demandas sociais que, em geral, estão ligadas apenas ao desenvolvimento das competências básicas de comunicação, quais sejam ensinar a decodificar o código, compreender um texto escrito - principalmente aqueles de natureza científica – e, por fim, oferecer o prazer de ler através da leitura de entretenimento com a qual se acredita criar o designado hábito de leitura. (CASTRILLÓN, 2012)
Obviamente que esses interesses sociais se somam aos interesses mercadológicos, que acabam por “ditar” as escolhas dos livros a serem adotados na escola. É certo que uma boa parte dos defensores de tais interesses dissemina a ideia segundo a qual os livros infantis sempre foram servos da pedagogia e da didática. Essa concepção, amplamente combatida nos anos 70 e 80, hoje está substituída pela lógica do mercado (ANDRUETTO, 2012) Não é à toa que muitas editoras promovem, em seus catálogos, uma literatura apta para educar em valores e classifiquem os livros segundo tais valores, de forma a atender às necessidades de uma sociedade que urge pela solidariedade, cuidado com o meio ambiente, tolerância.
Quando um texto se propõe a ser utilizado de modo unívoco como veículo de transmissão de um conteúdo predeterminado, a primeira coisa que bate em retirada é a plurissignificação. Deixa-se de lado a direção plural dos textos para convertê-los em pensamento global, unitário; assim, o literário subordina-se a um fim predeterminado que tende a homogeneizar a experiência. (ANDRUETTO, 2012, p.115 e 116)
O que acontece, na verdade, é um encontro entre a moral e a literatura, que ensina a criança a ser tolerante, a cuidar do meio ambiente, a viver em paz. Produtos de venda, esses livros contém mensagens direcionadas, atendendo inclusive às demandas das escolas no que tange aos projetos de leitura engajados. Estão vencidos, portanto, os objetivos de significação do texto para a criança, aquela significação que permite a imaginação, a compreensão do ser humano nas suas imperfeições e, consequentemente, como nos ensina Sponville (2016), o desenvolvimento de uma ética baseada num amor que liberta do dever.
Os livros funcionais, orientados pelos interesses editoriais, dominam a cena em detrimento da literatura que provoca a experiência mais importante na formação das crianças com a qual a escola deve ser ocupar. No caminho do mercado, saem de cena aqueles livros cujas palavras são cheias de significação, isentos das verdades dogmáticas, abertos à imaginação.
Portanto, há que se buscar os livros que fazem da escrita um campo de plurissignificação , um caminho na direção do coração do homem. Autores que escrevem com intensidade:
A intensidade é um sentimento que aparece diante de certas questões do mundo, quando nossa vinculação com essas zonas do humano é muito profunda , sem segundas intenções, complexa, desconcertante e genuína.(...) E somos nós, os leitores, também com nossa intensidade , com nosso exercício de liberdade, que decidimos quais livros ficarão vivos em nossos corações; somos nós que oferecemos, como campo de semeadura, nossa memória, para que os livros se instalem, cresçam, permaneçam. (ANDRUETTO, 2012, p.131 e 132)
Que saibamos, na escola, oferecer a transformação pela leitura, pela via da revolução que se opera no humano quando da experiência com o literário:
É nas frestas do real, como uma erva daninha, que a literatura nasce. A literatura não é um divertimento; tampouco é um saber especializado. Ela é um instrumento, precário e sutil, de interrogar a vida. Desloca nossas certezas, transformando-as em incertezas. (CASTELLO, 2012)
A confiança depositada na ficção segue o rastro dessas incertezas, que colocam a nu o humano, posto que intangível.
Silvana Mansur Assad
Diretora Pedagógica do Fórum Cultural
REFERÊNCIAS:
ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.
CALVINO, Italo. Seis Propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária, São Paulo, T.A. Queiroz, 2000
CARRANZA, Marcela. A literatura a serviço dos valores - Ou como avaliar o perigo da literatura, outubro de 2012, disponível em http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=249.