Parceria Escola/família: como educar nossos filhos?

Um equilíbrio entre tradição e humanismo

“Tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Fernando Pessoa

Há um tempo atrás, escutando uma apresentação de um professor de Filosofia sobre a importância da família e da escola na vida das crianças, uma das indagações do palestrante ao público presente trouxe um incômodo nunca antes associado a minha função de educadora:  por que, ao invés de
perguntarmos às crianças sobre seus sonhos,  indagamos sobre o que querem ser quando crescer?

Acometida por tal reflexão, outras me vieram no decorrer dos anos e das inúmeras experiências vividas em escolas de todos os tipos, públicas, privadas, tradicionais e socioconstrutivistas: Não é também tarefa da escola e da família aproximar nossas crianças, adolescentes e jovens de seus desejos mais recônditos? A descoberta daquilo que os move intimamente não estaria relacionada à função da família e da escola em oferecer condições para que estejam no mundo “praticando uma existência” mais íntegra, ética, feliz e potente frente aos desafios destes tempos que nos causam tanto desassossego?

No conceito de mutação do filósofo Adauto Novaes, é possível entender o tamanho e a legitimidade de tanto desassossego: “Sabemos que hoje o
pensamento vem a reboque dos acontecimentos. O estilo de vida e as concepções de mundo que nos dominam são superficiais e mecânicos, e as antigas definições são insuficientes para entendê-los. Vivemos na confluência de um mundo que ainda não acabou e outro que não se realizou inteiramente. A este novo fenômeno pode-se dar o nome de mutação - passagem muitas vezes indefinida do ponto de vista conceitual, que nos deixa à deriva, quando as trilhas são pouco visíveis ou confiáveis, em particular  se elas foram abertas não propriamente pelo trabalho do pensamento, mas pela técnica.”

De terra firme pouco nos restou, sobretudo se nos colocamos frente a tarefa de educar para o mundo. Se até meados do século XX a função da família era educar e a da escola era ensinar, de lá pra cá tudo mudou, tais papéis não só se transformaram, como também se associaram. O tempo das crianças em casa com irmãos, mães e pais se atrofiou,  as brincadeiras com os amigos da rua não são mais seguras , à Igreja não cabe mais a função de dizer o que está certo ou errado, o Estado Moderno encontra-se em franca decomposição.

A única instituição de convivência social (presencial, é claro!) que se manteve “quase” intacta foi a escola. Nela, meninos e meninas se encontram, não mais norteados por valores e regras sociais já postas, mas a serem construídas. Se no passado, a escola era um lugar que assumia apenas a função de ensinar, na atual realidade passa a ser um espaço de experiências coletivas único, num mundo em franca transformação. Não foi à toa que , há mais de 20 anos, precisamente em 1999, Edgar Morin foi convidado pela UNESCO para sistematizar um conjunto de reflexões acerca da educação do século XXI. As propostas apresentadas pelo filósofo francês no livro Os sete saberes necessários à educação do futuro recaem todas sobre um dos pontos centrais deste artigo: frente às mudanças decorrentes dos avanços inexoráveis das tecnologias digitais, da realidade virtual e da inteligência artificial, à escola cabe também a  preservação da nossa humanidade.

Neste cenário, avoluma-se o compromisso da escola com uma aprendizagem em nome do desenvolvimento humano integral e global, baseada em valores, dificilmente atingíveis apenas via currículos tradicionais. A uma estrutura curricular de base acadêmica - necessária ainda pela tradição que sustenta a educação brasileira e pelos mecanismos oficiais de acesso ao Ensino Superior - devem se somar tempo/espaço ocupados por práticas pedagógicas que colocam o próprio conhecimento numa perspectiva crítica, que abordam a condição humana na sua precariedade e incertezas, que orientam para a vida em sociedade e para uma ética planetária.

É urgente que se multipliquem as ofertas de práticas baseadas na convivência com a diversidade, no compartilhamento de experiências e de saberes, na construção de conhecimentos a serviço de  interferências sobre o mundo. Só assim estaremos verdadeiramente contribuindo para a formação de seres humanos mais conectados com suas próprias individualidades e seus próprios sonhos.

Assumir que a educação do futuro deve ter como prioridade um projeto pedagógico baseado em valores para o desenvolvimento humano é tarefa
hercúlea e se há uma única certeza em tempos tão incertos é a de que a formação desta nova geração depende de uma prática dialógica e de relações fraternas entre professores, coordenadores, diretores, pais e mães… Esta rede de colaboração precisa se ancorar no fato de que somos responsáveis por devolver significativas experiências aos nossos “filhos” capazes de reconectá-los ao que mais de humano nos caracteriza: “quando os outros entram em cena, nasce a ética.”

Umberto Eco devolve a reflexão ao patamar inicial. Onde foi que nos perdemos, família e escola, daquele que parece ser nosso papel essencial, o
de dar aos filhos o espaço e o tempo necessários para se transformarem em seres sociais? Provavelmente quando abandonamos tarefas simples, muito simples, de proporcionar a eles convivências múltiplas e frequentes, momentos com a natureza, contato com a comida, conversas sem telas… É na relação construtiva com o outro que chegamos a nós mesmos, seja o “outro” um colega de escola, um professor, um irmão, o pai, a mãe, o alimento, o universo.

Nas nossas labutas diárias, essas relações nos compõem e nos constituem; dão o caldo para que o sonho, num momento de descanso, revele caminhos, ilumine possibilidades. Paul McCartney teria concebido Yesterday depois de um sonho. A melodia “revelada” ganharia posteriormente a letra e se tornaria uma das canções mais populares de todos os tempos. De Freud para cá, muito se tem estudado sobre o assunto, muitas são as dúvidas. A ciência já sabe, entretanto, que o sonho pode ajudar na indução de uma ideia original, autoral, desde que estejam sólidas as bases do conhecimento daquilo em que se pretende ser criativo.

Que não falte nas escolas solo firme onde habitem todos os sonhos do mundo!

Silvana Mansur Assad
Diretora Pedagógica do Fórum Cultural