Todo dia era dia de índio

 

"Todo dia era dia de índio
Mas agora eles só têm"
O Dia 19 de Abril
(Jorge Ben Jor)

O mês de abril é um mês repleto de datas históricas tradicionalmente celebradas nas escolas: Descobrimento do Brasil, Dia do índio, Tiradentes, Dia do Hino Nacional Brasileiro. Em maio, temos o Dia da Abolição da Escravidão, o dia das Bandeiras. Em setembro, Dia da Independência e, como essas, tantas outras efemérides.

Há muito, contudo, já não mais fazemos correntes de cartolina arrebentadas nos murais das escolas por ocasião do 13 de maio, ou enfeitamos nossas crianças com um penacho na cabeça e uma pintura no rosto no 19 de abril… É preciso atualizar a perspectiva conceitual do que se celebra, dada a evolução social dos conhecimentos históricos e historicamente construídos! 

Não celebrar as efemérides não quer dizer que as datas não sejam importantes no conceito do que homenageiam ou rememoram… Claro que são marcos relevantes para um convite à reflexão. Mas deixar de celebrar tais eventos como efemérides é uma opção de potente intencionalidade pedagógica para a formação de cidadãos críticos e globais! 

Você sabia que não existe mais “dia do índio”?! Hoje, o que se celebra no 19 de abril é o Dia dos Povos Indígenas, e a mudança é muito maior do que mera questão de nomenclatura… Celebrar o “Dia dos povos indígenas” em detrimento do “Dia do Índio” é fazer ecoar a diversidade de povos e nações que constituem o conjunto de populações originárias do nosso Brasil, para a qual nenhuma abordagem singular se faz suficiente… Não existe “índio”; existem indígenas. Muitos! De muitos povos. Muitas nações. Muitas culturas, heranças e legados! Assim, não é possível existir um “dia do índio” assim, no singular. Povos indígenas são plurais e devem ser assim reconhecidos: no plural. 

Não celebrar a data como efeméride quer dizer ainda mais: é uma forma de significar que  todo dia é dia de indígena, de branco, de pardo, de negro. Não existe qualquer pintura, penacho, cocar ou dança capaz de concentrar, em si, a representação do significado de ser indígena… cada pintura, cada cocar, cada miçanga ou semente tem seu sentido cultural ou ritual específico, autêntico para cada povo. Impossível, portanto, unificar a diversidade e pluralidade de povos e nações indígenas sem incorrermos em reducionismos ou estereótipos. 

O mesmo se aplica aos povos africanos. A generalização histórica de denominar todo negro escravizado como “escravo” destitui diferentes povos das respectivas características e identidades originais. Não é tudo “negro”, tudo “africano”, tudo “escravo”. Foram muitos os povos, muitos os reinos acometidos pela brutalidade do comércio de pessoas escravizadas para o Brasil… Não é tudo “africano”, assim como não é tudo “asiático”... japoneses são significativamente diferentes, em termos étnicos e culturais, de chineses, coreanos ou indonésios ou indianos, não é mesmo? 

Desde 1996, mas mais refinadamente em 2003 e 2008, legislações normatizam a temática das histórias e culturas afro-brasileira e indígenas nos currículos escolares brasileiros. Há que se abordar histórias e trajetórias desses povos em suas múltiplas dimensões e contribuições, para além daquelas referências tradicionais ao mundo do trabalho. Ou das efemérides!

Há que se tematizar arte e literatura africanas e indígenas em toda sua riqueza, diversidade e complexidade. Há que se garantir presença e relevância desses povos nos currículos escolares nacionais em igual medida da presença e relevância destes na construção do Brasil e do povo brasileiro.  

Assim, somos convidados a repensar sentidos, tradições e práticas da cultura escolar referentes às tais efemérides… Aqui no Fórum Cultural, tais presenças e relevâncias são estruturantes de nosso currículo. Além disso, especificamente nos meses de abril e maio vivenciamos o projeto pedagógico Origens, no qual nossos estudantes investigam as respectivas origens familiares e desenvolvem inúmeras atividades de pesquisa, oficinas, trabalhos de campo, expressões artísticas, rodas de conversa e palestras acerca da formação étnico-cultural do nosso Brasil. Neste ano de 2022, uma escritora indígena encantou nossos alunos da Educação Infantil e Ensino Fundamental 1 com a leitura de poesia, brincadeiras de canto e de dança tradicionais de algumas tribos amazônicas. As turmas de Fundamental 2 se dedicaram às personalidades brasileiras negras e seguimos com o Ensino Médio na trilha da construção de uma escola antirracista, que forma pessoas antirracistas, para uma sociedade que desejamos antirracista! 

Temos capoeira no currículo de Educação Física e nosso projeto inclui, ainda, momentos com imigrantes europeus, asiáticos e árabes, membros da nossa comunidade escolar, para partilha de experiências de vida e cultura em diversidade. 

Aliás, diversidade é conceito estruturante da proposta pedagógica do Fórum Cultural. O século XXI é o século da diversidade e a escola é o lugar em que pensar e conviver com as diferenças precisa ser reconhecido como força, e não como risco! É na escola que crianças e jovens vivenciam encontros e desencontros com as distintas formas de ser e existir no mundo. Para crianças e jovens, a escola é o mundo. E, neste mundo, é preciso que eles aprendam que negros, indígenas, pardos, brancos, árabes ou asiáticos não existem somente em dias específicos. Existem no mundo! São cidadãos do mundo! E do mesmo mundo!  

Adriana Hassin

Diretora Executiva do Fórum Cultural