Vire a página!
Quem busca na vida algo colher deve procurar semente, não sombra.
Era uma vez uma história. Daquelas de encher os olhos e os corações.
Saída da boca dos mais velhos, permeava o imaginário de quem escutava a
sonoridade das vozes, geração após geração. Data de muito longe o amor
pelas narrativas, o encantamento pelas palavras e acontecimentos. Sabe-se
que muitas das histórias clássicas foram contadas e recontadas em meio a
rodas de conversas, embalados pelo tom das vozes que moldavam a trajetória
dos personagens.
No tempo do “Era uma vez…” tudo é possível. Expressão atemporal,
não nos limita o tempo e o espaço em que a narrativa acontece. Talvez por
isso, nos permita transitar com certa facilidade entre o real e o imaginário.
Afinal, o que imaginamos não é real? Certo de que as crianças apresentam
uma capacidade incrível de (re)criar realidades, as narrativas são meios
potentes de fazê-las compreender muitos dos sentimentos, hipóteses e
perspectivas com as quais enxergam o mundo que as cerca. Ainda que não
tenhamos total consciência das razões que nos levam a se encantar pelas
narrativas, nos arriscamos dizer que toda vez que abrimos um livro, estamos
em busca do rosto humano, do reconhecimento de nossas forças e fraquezas.
Buscamos, nas narrativas, o reconhecimento do que somos como seres
humanos.
Justamente dessa ideia que surgem os questionamentos: por onde
começar a ler para as crianças de nosso tempo? Como realizar a curadoria das
narrativas, uma vez que as crianças estão cada vez mais envolvidas com os
meios digitais, cujo tempo e espaço são diferentes dos dedicados à leitura?
Não é tarefa fácil, sabemos. Por outro lado, acreditamos na força que as
histórias têm. Não raro nos deparamos com a resistência em iniciar uma
história com crianças e, não raro também, percebemos que, depois de iniciada,
a curiosidade e a atenção ao que está sendo narrado se demonstra pelos
olhares e questionamentos que surgem no decorrer da narrativa.
Não existe uma resposta única e correta para as perguntas feitas. Ler
não é um processo que se dá tal qual uma receita de bolo, mas conseguimos
vislumbrar caminhos possíveis para que a formação de leitores dentro da
escola efetivamente aconteça. Embora não tenhamos uma receita, temos um
princípio:
Ler não é um hábito e sim uma DECISÃO!
Ter a palavra hábito como sinônimo de formação de leitores nos indica
algo que fazemos sem intencionalidade, quase que de forma mecânica. É
como comparar o ato de ler ao ato de escovar os dentes, comer, tomar
banho… estas sim são situações habituais, corriqueiras. Não se trata de
“quanto mais se lê, mais se quer ler”. Pensamos nessa afirmativa como a
divulgação de uma inverdade. Não é focando na quantidade de livros lidos que
necessariamente alcançaremos o objetivo de formar leitores. É na qualidade
das experiências de leitura que acreditamos ser um bom investimento. Já a
decisão é algo intrínseco, mais forte. Pressupõe um desejo. É nele que
queremos chegar com nossas crianças. Tocar tão profundamente que as faça
desejar a leitura, percebê-la como um direito. É partindo dessas premissas que
planejamos os nossos projetos literários.
Ao pensar em um projeto literário, quase que instintivamente, nos
perguntamos por qual livro começar. Inicia-se, nesse momento, o processo de
curadoria dos livros que comporão, a princípio, a proposta que se quer pôr em
prática. Essa curadoria é um ponto chave para qualquer projeto literário. À ela
corresponde a forma como pensamos a literatura, especialmente para a
infância.
Que referências literárias adquirimos ao longo de nossa trajetória
profissional que nos possibilite uma mediação leitora consonante com a ideia
de leitura como uma decisão?
O mercado editorial vem, ano após ano, investindo na literatura voltada
para a infância. Tanto que profissionais diversos têm se debruçado e investido
seriamente nos livros infantis. Sejam pintores, desenhistas ou mesmo
designers gráficos, os livros infantis têm ganhado muito com a capacidade
criativa e potente das mais diversas áreas. Sendo assim, não há mais como
pensar na literatura infantil como aquela que está a serviço de ensinar algo às
crianças. Pensemos, pois, na literatura como uma possibilidade de
transformação coletiva e individual. Afinal ela pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam nos fazer compreender melhor o mundo
e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em
seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro.
(Izvetan Todorov, A literatura em perigo, 2020)
Acreditamos concretamente nessa transformação através das
experiências literárias oferecidas dentro da escola. E justamente por assim
crer, a busca por uma curadoria que abarque a qualidade ética e estética da
produção no mercado editorial é, sem dúvida nenhuma, a primeira etapa a se
dar atenção ao pensarmos em um projeto literário.
Você pode estar se perguntando: afinal, como fazer essa escolha?
Embora tenhamos a consciência de que existe um gosto pessoal literário, que
esse gosto conversa com nossas experiências leitoras ao longo das nossas
vidas, existe alguns pontos relevantes que podem nos auxiliar quando no
momento da curadoria:
Procurar por órgãos reguladores da Literatura infantojuvenil no Brasil. A
Fundação Nacional do Livro Infantil (Fnlij) é esse órgão referência
quando se fala de literatura para a infância. Existem órgãos reguladores espalhados pelo mundo afora, todos sancionados pela IBBY (Internacional Board on books for young people); Anualmente a Fnlij premia livros de literatura infantojuvenis. Vale
sempre estar de olho nesses livros. Além disso, os livros finalistas
ganham um selo de qualidade, o que confere a cada um deles a
potência inovadora e séria com a edição publicada;
É inegável o espaço que as redes sociais têm ganhado em nossas
vidas. Não é difícil encontrar todo tipo de temas e discussões e a
literatura infantojuvenil não ficaria de fora. Canais como
@acigarraeaformiga, @conversadequintal, @mergulholiterario e
@nacordabamba, todos encontrados na plataforma Instagram,
produzem um conteúdo acerca do assunto com referenciais que são
resultados dos estudos sobre a LIJ e focados na formação de professores.
Para além desses parâmetros, há um que não podemos descartar: a
sensibilidade e conhecimento que os próprios professores têm sobre as turmas
com as quais trabalham. Baseamo-nos sim em órgãos reguladores e
produtores de conteúdos sobre a LIJ, porém o conhecimento e o estreitamento
de laços entre nós e nossos alunos é o eixo regulador de nossas escolhas.
Compreender quais são os anseios, curiosidades e personalidades de nossos
alunos certamente nos ajudam a fazer escolhas mais assertivas no que
concerne à curadoria dos livros a serem lidos.
Por outro lado, tanto quanto conhecer nossos alunos, é importante,
também, que saibamos os nossos próprios gostos. Antes de ler com ou sugerir
uma leitura, lemos o livro para nós mesmos. Por quê o fazemos? Se o livro nos
tocar, nos mobilizar, fato será que mobilizará os alunos também. Leitura é
sentimento! Quanto mais imbuída das palavras, das ilustrações, do projeto
gráfico do livro estivermos, maior a chance de mediar e permitir o
encantamento gerado pela leitura de uma narrativa. Tocamos na medida em
que somos tocados. Se escolhemos os livros de forma superficial ou lemos
apenas por uma obrigação, é factível que todos à nossa volta perceberão e,
talvez, o resultado seja contraditório à intenção.
A ideia de projeto vem muito a favor da nossa concepção de trabalho
com a literatura. Nos remete à ideia de construção. Ler é abrir caminho para o
desconhecido, sendo assim, não faz sentido ter etapas tão rígidas em relação à
forma como as propostas efetivamente acontecerão. Embora haja um
planejamento, há também a flexibilidade de traçar novos trajetos a partir da
interlocução com os alunos.
Do “Vamos ler de novo!” ao “Para a história que não estou entendendo
nada.” faz-se imperativo que o mediador de leitura seja observador atento para
traçar os caminhos a se percorrer com os alunos com os quais compartilha as
experiências leitoras. Nem sempre a leitura será apenas prazerosa, mas, por
vezes, desafiadora. Nesse sentido, embora seja importante compreender os
gostos de desejos do grupo, também é necessário fazê-los caminhar por
“águas ainda desconhecidas”. VIRE A PÁGINA! Talvez essa seja uma frase
para se levar na mente e nos corações. O ato de virar a página pode significar
um DEVIR: aceitar as regras da narrativa, cuja a máxima é não saber nada
sobre o mundo retratado no livro e esperar aos poucos a revelação, ou não, do
que foi proposto inicialmente.(Autor não identificado) Acreditamos ser essa a
verdadeira “viagem” na leitura: a possibilidade de maravilhar-se ou
decepcionar-se tal como acontece na vida dita real. Mas e se, ao virar a
página, ainda assim a narrativa continuar não agradando? Te diremos: Pare!
Talvez você ainda não esteja preparado para essa leitura. Mas
prosseguiremos: Abra um outro livro e continue a virar a página!
Seja na vida real ou literária, virar a página é sempre necessário!
Como gostamos de continuar virando nossas páginas, seguem algumas
sugestões para iniciar os estudos em literatura infantojuvenil:
1. BRENMAN, Ilan. Através da vidraça da escola: formando novos leitores.
Belo Horizonte: Editora Aletria, 2012.
2. CARVALHO, Ana Carolina; BAROUKH, Josca Ailine. Ler antes de saber
ler: oito mitos escolares sobre a leitura literária. São Paulo: Editora
Panda Books, 2018.
3. CASTRILLÓN, Silvia. O direito de ler e de escrever. São Paulo: Editora
Pulo do Gato, 2011.
4. MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais
desde cedo. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009.
5. MEIRELES, Cecília. Problemas na literatura infantil. São Paulo: Editora
Global, 2016.
6. RITER, Caio. A formação do leitor literário em casa e na escola. São
Paulo: Editora Biruta, 2009.
Esse conteúdo é de autoria de Juliana Saboia e Paula Fernanda Figueiredo,
Professoras do 4º ano ano do Fórum Cultural e amantes da literatura infantil.